2021-03-31
DIÁRIO DE NOTÍCIAS
Lisboa, cidade judaica… também
Ao saber que o futuro Museu Judaico vai ser hoje apresentado em Lisboa recordei-me de uma entrevista ao rabino Shlomo Pereira em que este sublinhava que “a Península Ibérica nos anos 1400 era o centro do judaísmo no mundo… em tudo”. O também economista nos EUA, onde responde pelo nome de Alfredo Marvão Pereira, acrescentava que do ponto de vista da produção intelectual os judeus portugueses e espanhóis de então quase que podiam comparar-se aos de hoje em Israel, nos Estados Unidos e em França. Não por acaso o mais antigo livro impresso em Portugal, um Pentateuco surgido em Faro em 1487, está em hebraico.
Mas não se pense nos judeus como uma comunidade separada, falando a sua própria língua. Garantiu-me Shlomo Pereira, numa entrevista a propósito de grandes pensadores da época, que “os judeus não viviam em Portugal num gueto”. Muitos eram médicos, mas por exemplo Isaac Abravanel, um dos geniais portugueses que consta do livro Vozes Judaicas de Portugal, era um grande estadista ao serviço de D. Afonso V e a sua queda em desgraça e fuga para Espanha não teve que ver com a religião mas sim com as desconfianças de D. João II. Aliás, Abravanel entrou logo ao serviço de Castela, então ainda poupada ao fanatismo que os Reis Católicos tornariam política de Estado inebriados pela tomada de Granada e a descoberta da América.
Conhecemos bem a tragédia que se seguiu ao Édito de Expulsão dos judeus em 1496, com D. Manuel contrariado a querer agradar a Isabel de Castela e a Fernando de Aragão, seus sogros. Tragédia para os judeus, que ou partiram ou falsamente se converteram ao catolicismo, tragédia também para Portugal que perdeu muito do escol. Ficaram a ganhar as Províncias Unidas, embrião da Holanda, e o Império Otomano, onde um calvinismo tolerante e um islão tolerante permitiram aos judeus portugueses encontrar um exílio seguro. Ficaram também a ganhar os futuros Estados Unidos onde a primeira congregação foi criada por sefarditas, judeus de origem portuguesa e espanhola que tinham chegado a viver no Brasil ocupado pelos holandeses.
Prova de como a história judaica atrai cada vez mais interesse, acaba de ser publicado um livro sobre os judeus portugueses nos EUA, da autoria de Carla Vieira. Emma Lazarus, a poetisa cujo soneto sobre “um acolhedor abraço fraternal” está no pedestal da Estátua da Liberdade, é trineta de um lisboeta.
O amor a Portugal, a pátria que os rejeitou, manteve-se por muito tempo. Não faltam escritos que elogiam a beleza de Lisboa, que falam de saudades. Mas as perseguições mantiveram-se, não faltando por cá cristãos-novos, que a Inquisição procurava até debaixo das pedras. Que comunidades criptojudaicas como a de Belmonte tenham sobrevivido é talvez uma prova do enraizamento do judaísmo em Portugal, que teve uma nova vida a partir do século XIX, com famílias que regressaram, como os Bensaude, que terão um descendente eleito Presidente da República já no nosso tempo, Jorge Sampaio.
Tem um especial simbolismo que a data escolhida para apresentar este Tikva – Museu Judaico de Lisboa coincida com os 200 anos da extinção da Inquisição em Portugal. O marquês de Pombal já tinha acabado com a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, mas foram as Cortes Constituintes saídas da Revolução Liberal de 1820 que acabaram com o Tribunal do Santo Ofício. A história não se apaga, vai-se fazendo. Haja esperança.
leonídio paulo ferreira