2020-12-18
DIÁRIO DE NOTÍCIAS

Mudança do Museu Judaico para Belém “é uma vitória” para Alfama

É uma alegria, é uma vitória para o bairro e para a população.” Lurdes Pinheiro, presidente da Associação do Património e População de Alfama (APPA) – entidade que travou a construção do Museu Judaico no Largo de São Miguel, em Alfama, ao interpor uma ação popular com providência cautelar que foi acolhida pelos tribunais – reage assim à notícia de que o espaço museológico será, afinal, construído em Belém. “Só é pena ter demorado tanto tempo”, diz ao DN, sublinhando que a luta da APPA “nunca foi contra o Museu Judaico, foi em defesa do Largo de São Miguel”.

A associação argumentou desde o início que o projeto definido para aquele local descaracterizava o largo e não respeitava as regras urbanísticas. E viu o Tribunal Central Administrativo do Sul e mais tarde o Supremo Tribunal Administrativo darem-lhe razão – a câmara viu-se obrigada a parar as obras e o processo arrastou-se de 2016 até agora. Ainda sem uma decisão final, o executivo liderado por Fernando Medina decidiu arrepiar caminho e vota na próxima segunda-feira, em reunião extraordinária da câmara, a revogação dos protocolos para a instalação do museu em Alfama e a celebração de novos acordos para que fique instalado na freguesia de Belém, junto à Avenida da Índia. As propostas terão depois de ser aprovadas na Assembleia Municipal. Num comunicado que será distribuído nesta sexta-feira à população, a APPA considera que “estão criadas condições para pôr fim à contenda judicial”.

Mas esta é uma luta que não terminou. Lurdes Pinheiro – que foi candidata da CDU à Junta de Freguesia de Santa Maria Maior nas últimas eleições autárquicas – quer agora que a câmara use os quatro prédios que iriam dar lugar ao museu para criar habitação no bairro. “Já que a câmara está tão preocupada com a habitação, tem ali um terreno, crie casas no bairro”, argumenta a dirigente da APPA: “Queremos que a câmara recupere o largo tal como ele era” e com os edifícios dedicados a habitação permanente. Uma posição que, lembra o mesmo comunicado, tem o “apoio expresso de mais de mil e duzentas pessoas que assinaram a petição “Queremos Casas no Largo de São Miguel”.

As propostas para a localização alternativa do museu contarão, na próxima semana, com o voto favorável do PCP. “Estamos satisfeitos com a solução que a câmara encontrou, é benéfica para Alfama e para o museu. Nunca estivemos contra o museu, mas ao lado da população na ideia de que não era adequado para o Largo de São Miguel”, diz ao DN a vereadora Ana Jara. Agora, acrescenta, é preciso que a câmara construa “habitação a custos acessíveis” num bairro que tem sofrido uma enorme perda de moradores: “Alfama já sofreu demasiado com uma exploração excessiva do turismo, com a perda de moradores, de equipamentos de proximidade, temos agora o exemplo do fecho do posto da Caixa Geral de Depósitos.”

Bloco de Esquerda (que apoia o executivo de Fernando Medina) e CDS, o maior partido da oposição na autarquia lisboeta, reservam posições para mais tarde.

Anunciado em 2016, com abertura prevista para o ano seguinte, a construção do Museu Judaico no coração do bairro lisboeta suscitou a contestação de moradores, que interpuseram uma ação popular com providência cautelar – um processo que ainda corre nos tribunais e que a APPA admite agora deixar cair – para travar o projeto.

Com todo o processo parado, a Câmara de Lisboa optou por se antecipar à decisão judicial e mudar a localização do museu. A alteração, que aponta a nova morada para Belém, vai a reunião do executivo municipal na próxima segunda-feira. Da agenda constam várias propostas referentes a este assunto, nomeadamente a “revogação do Protocolo Tripartido celebrado entre o Município de Lisboa, a Comunidade Israelita de Lisboa e a Associação Turismo de Lisboa (ATL), para a criação e funcionamento do Museu Judaico”. Prevista está também a “revogação do direito de superfície constituído a favor da Associação de Turismo de Lisboa” dos prédios em Alfama que deveriam dar lugar ao Museu Judaico.

Em paralelo será discutida uma outra proposta, que visa “submeter à Assembleia Municipal a celebração de contrato-promessa de constituição de direito de superfície a favor da Associação Hagadá, sobre prédios municipais, sitos entre a Avenida da Índia e a Rua das Hortas, na Freguesia de Belém, para construção do futuro Museu Judaico de Lisboa”.

Nas propostas, a que o DN teve acesso, é referido que “em virtude de vicissitudes várias, designadamente as decorrentes do processo judicial que se encontra ainda a correr os seus termos, encontra-se por ora vedada a possibilidade de assegurar a continuidade do processo de construção do Museu Judaico de Lisboa, no Largo de São Miguel, em Alfama”. “Perante a importância que assume a concretização deste projeto, e face à incerteza quanto à possibilidade (e oportunidade) de construir este equipamento no local e nos moldes inicialmente concebidos, foram desenvolvidos todos os esforços com vista à identificação de soluções alternativas que permitissem a sua viabilização”, refere o documento.

Neste contexto foi “identificado um local alternativo” para a construção do Museu Judaico de Lisboa – entre a Avenida da Índia e a Rua das Hortas -, que “permitirá conceber e realizar um projeto com características e condições únicas para o efeito e conceber um novo modelo para a criação, implementação e funcionamento do Museu Judaico de Lisboa, através de uma entidade especificamente criada para o efeito: a Associação Hagadá” – associação privada sem fins lucrativos que ficará responsável pela “criação, instalação e funcionamento” do Museu Judaico de Lisboa.

Num dos documentos que vão a discussão é referido que “a Comunidade Judaica aceita e vê com agrado a construção do futuro Museu Judaico nesta nova localização”.

O plano para a construção do Museu Judaico foi anunciado em 2016, resultado de um acordo entre a Câmara Municipal de Lisboa, a Associação de Turismo de Lisboa e a Comunidade Israelita de Lisboa. O projeto então apresentado, da autoria da arquiteta Graça Bachmann, com quatro andares acima do nível da rua, apresentava duas fachadas distintas, uma semelhante ao edificado residencial típico do bairro, e outra bastante diferenciada, em pedra lioz e com um friso em baixo relevo a desenhar a Estrela de David, que dava para o Largo e para a Rua de São Miguel – um local escolhido também pelo seu simbolismo, próximo da antiga Judiaria de Alfama, o principal bairro de judeus da cidade. Fernando Medina, presidente da autarquia, falou então num dia “histórico”, o princípio do fim na concretização de uma “velha ambição” da autarquia. Na altura estava previsto um investimento total de cinco milhões de euros, suportado por fundos da taxa turística e por uma doação da Fundação Lina e Patrick Drahi (fundador e presidente do grupo Altice) no valor de cerca de 1,2 milhões de euros. O museu ficaria localizado no espaço até então ocupado por três prédios camarários e um quarto, propriedade de um privado, que a câmara adquiriu (cedendo os direitos de superfície à Associação de Turismo de Lisboa) e deveria estar concluído logo no ano seguinte, em 2017.

Uma ideia com duas décadas, um projeto que se arrasta há quatro anos

Mas a história do Museu Judaico estava mesmo no princípio. A ideia não agradou nem aos moradores nem a associações de defesa do património, que argumentaram que o projeto desvirtuava as características arquitetónicas do Largo de São Miguel e não respeitava o Plano Diretor Municipal de Lisboa.

A APPA avançou então com uma providência cautelar contra a demolição dos quatro edifícios e a construção do museu no largo. A providência começou por ser recusada em primeira instância, mas acabaria validada pelo Tribunal Central Administrativo do Sul e mais tarde pelo Supremo Tribunal Administrativo, que apreciou o caso na sequência de um recurso da autarquia. Segundo noticiou o Público em junho de 2019, o STA concluiu que a demolição dos edifícios que existiam no local não respeitava o Plano de Urbanização do Núcleo Histórico de Alfama e da Colina do Castelo. Na documentação que vai à reunião da câmara é referido que o reagendamento da audiência de discussão e julgamento, no âmbito da ação administrativa impugnatória, foi “adiada sine die, por força dos condicionalismos impostos pela declaração de estado de emergência”.

Nas propostas que vão a decisão camarária na próxima segunda-feira, a autarquia refere que a “ideia da criação de um Museu Judaico em Lisboa nasceu há cerca de duas décadas, como resposta a um interesse crescente por parte da sociedade e à necessidade de recolha, preservação e divulgação de um património atualmente disperso, desconhecido e em grande parte não identificado”. “Lisboa, onde o passado judaico assumiu uma enorme relevância, é das poucas capitais onde ainda não existe um equipamento dedicado, exclusivamente, à salvaguarda e divulgação dessa importante herança cultural”, aponta o documento.

A construção do Museu Judaico na freguesia de Belém vai implicar uma permuta de terrenos entre a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a autarquia. Segundo é explicado, trata-se de um terreno em que a Santa Casa previa a “criação de lotes destinados a habitação e de um equipamento privado, destinado a centro de dia e utilização coletiva”, mas que teve o licenciamento recusado nos termos em que estava previsto e condicionado a uma diminuição da volumetria e do edificado. O projeto deverá agora passar para o novo terreno cedido pela câmara, o que implicará a saída daquele local do Centro de Arqueologia de Lisboa, que será mudado para “instalações municipais sitas na Quinta do Olival e Casal dos Abrantes”. A câmara escreve que estão “também asseguradas as condições para cessação das demais ocupações existentes”. O terreno que é permutado pela Santa Casa não tem qualquer construção.

susete francisco