2021-03-31
PÚBLICO

Article by Esther Mucznik

Um dia especial para o Tikvá Museu Judaico

Hoje, dia 31 de Março, é dado um passo decisivo para a criação do Museu Judaico em Lisboa.

É com efeito, nesta quarta-feira que a Associação Hagadá, responsável pela instalação do Museu Judaico, assina o protocolo com o Município de Lisboa que nos permite iniciar o processo de construção do Tikvá Museu Judaico. Porquê “Tikvá”? Simplesmente porque é a palavra hebraica que significa esperança. Esperança, sem a qual não podemos realizar os nossos sonhos, esperança que nos dá força para lutar por eles.

Neste dia está connosco um homem também muito especial: Daniel Libeskind, o arquitecto da memória e da esperança, o arquitecto do Tikvá Museu Judaico. É ele quem afirma que a memória está na base de toda a construção e que a esperança é o outro lado da tragédia, o que nos permite sobreviver. É, aliás, a Daniel que devemos a inclusão da palavra esperança no nome do museu e os módulos que o constituem terão simbolicamente a forma de cada uma das letras em hebraico da palavra Tikvá.

Polaco de origem, americano por opção, é filho de sobreviventes do Holocausto e um eterno imigrante para quem o mundo, um país ou uma cidade, não pertence apenas aos que aí vivem, mas a toda a humanidade. Talvez seja por isso que antes de projectar as suas obras, Libeskind procura sempre conhecer e assimilar a história que as envolvem. O Museu Judaico de Berlim ou o World Trade Center Master Plan, em Nova Iorque, são dois desses exemplos entre as mais de 50 obras por ele projectadas, sempre relacionadas com a narrativa e a memória local.

O mesmo aconteceu em Lisboa, cidade que ele já conhecia antes de aceitar a nossa proposta para projectar o Museu judaico de Lisboa. Nesses dias do ano de 2019 em que veio a Lisboa a nosso convite, Daniel Libeskind deslumbrou-se de novo com a luz da cidade, o brilho do Tejo e com a Torre de Belém no horizonte do futuro Museu. E quis conhecer logo a história que vamos contar, uma histórica única de perto de dois mil anos de longevidade e de pluralidade de culturas que conferem ao judaísmo português um carácter peculiar e muito rico que o museu, com o seu projecto arrojado e inovador, dará a conhecer ao grande público nacional e estrangeiro.

Como contar essa história? O que pretendemos, qual a visão, o fio condutor que guiará a exposição do museu e as suas actividades centrais? A quem se dirige?

O público-alvo será prioritariamente a população portuguesa. É a ela que queremos em primeiro lugar dar a conhecer uma história e uma cultura ainda hoje muito pouco conhecidas. O Tikvá Museu Judaico de Lisboa será um museu português e lisboeta, que contará uma história, a história dos judeus portugueses, dos homens e das mulheres que ajudaram a fazer Portugal.

Perguntam-me por vezes se o museu será uma mais-valia para os judeus em Portugal e no estrangeiro. A minha resposta é obviamente afirmativa, mas é à população não judia que nos queremos dirigir prioritariamente. É a ela que queremos dar a conhecer uma história ainda ignorada por muitos.

Mas se o desconhecimento é grande no nosso país, maior ainda o é no estrangeiro, onde a história de Portugal e nomeadamente dos judeus portugueses se confunde com a de Espanha, onde quando se fala do judaísmo ibérico se menciona apenas o espanhol. Por isso, o nosso outro alvo será sem dúvida o público fora de Portugal, não apenas através do turismo, mas também de intercâmbios de todo o tipo com museus congéneres. Aliás, o Museu Judaico de Lisboa, apesar de estar ainda em preparação já faz parte da rede dos museus judaicos europeus: aprendemos com eles, e eles também aprendem connosco.

Como contar? Todos sabemos que a história dos judeus portugueses tem largos períodos de escuridão: o Édito de Expulsão, as conversões forçadas e três séculos de Inquisição e desterro. Mas a narrativa contada no museu não será uma história de vítimas. Além desses momentos sombrios, houve ao longo de perto de dois mil anos de presença judaica, muitos outros de luz. E sem esconder os primeiros, insistiremos no lado luminoso da nossa história. Porquê? Em primeiro lugar porque é o mais desconhecido, porque apagado e varrido da memória colectiva, mas também porque foi nos períodos de relativa liberdade ou pelo menos de tolerância e de convivência que os judeus puderam desempenhar um papel relevante para a sociedade e o país: na medicina e na ciência, na descoberta de novos mundos, nas finanças e no comércio, na filosofia e na arte do manuscrito e da impressão. E é precisamente essa ideia que gostaríamos de transmitir: a da liberdade como condição para a criatividade, a invenção e a inovação científica ou artística.

Nesse sentido, tentaremos que o museu seja igualmente um espaço de convívio e lazer, aproveitando para esse efeito o auditório, o restaurante e a cafetaria, assim como o espaço verde no qual os visitantes poderão ver algumas obras de arte contemporânea judaica. Mas também que o museu venha a ser um espaço de debate e reflexão sobre questões da actualidade e de dialogo intercultural. Porque contrariamente à visão redutora dos que temem a pluralidade de culturas, esta na verdade contribui significativamente para enriquecer a identidade de um povo e de um país.

O Museu Judaico contará a história luso-judaica de forma cronológica e temática: a primeira área expositiva será dedicada à cultura judaica, às suas tradições e costumes. Seguir-se-á a vivência judaica no território que é hoje Portugal desde a época romana até à actualidade, procurando sempre que possível personalizar a história dos judeus portugueses assim como o seu papel social, cá dentro ou nos países de exílio.

O museu não será assim um museu de peças. Estas serão o suporte da história que vamos contar e da cultura que queremos revelar. E também não hesitaremos em utilizar todos os meios tecnológicos que estimulem o interesse do público, especialmente dos mais jovens. Não temos nenhum preconceito em relação a isso: o essencial é que a história que vamos narrar seja acessível e atraente, sem deixar de ser rigorosa. Para este último ponto, temos o apoio de uma comissão científica que acompanha e valida o nosso trabalho.

Como referi no início, hoje é um dia especial para o Tikvá Museu Judaico. Mas não foi por acaso que propusemos esta data. Foi com efeito precisamente há 200 anos, no dia 31 de Março de 1821, que foi aprovada por unanimidade pelas Cortes em Lisboa a extinção formal da Inquisição. O denominado Tribunal do Santo Ofício deixava assim de existir, 285 anos depois de ter sido criado. Quase três séculos de vidas destroçadas, de dor e sofrimento, de atraso e de aniquilação da liberdade de pensamento e de consciência, de estímulo à denúncia e ao medo. Três séculos que marcaram negativamente e profundamente a sociedade portuguesa.

É por isso que, neste dia de esperança e de alegria, celebramos também o segundo centenário do fim dessa época de escuridão, que abriu para toda a população em geral e judeus em particular, o caminho da liberdade.

Podíamos ter escolhido um dia melhor? Acredito que não.